sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Veneza 6: vagueando pelas igrejas

Num só post dar conta da riqueza artística que se encontra nas igrejas de Veneza?
Posso tentar, mas ficará sempre por mostrar muito mais - e já prescindo das demasiado conhecidas,  de S. Marcos a La Salute.

Igreja de Sant' Alvise



Situada num recanto das "traseiras" de Veneza, nos Fuondamenta Nuove frente a Murano, onde poucos visitantes vão (estive lá sozinho !) , esta igreja gótica de planta quadrada e de aparência singela surpreende pelo requinte interior: um tecto pintado com frescos do séc. XVII, que foi preservado até hoje pela quase ausência de visitas.

 
 

Frescos de Pietro Torri e Pietro Ricchi cobrem quase todo o tecto. O contraste da falsa perspectiva com a arquitectura gótica é violento, mas sedutor.

 
Perto, ainda na margem norte mas um pouco mais para leste em direcção a S. Marcos, a

Madonna dell'Orto


é mais conhecida; mesmo assim, continuei com a sorte de percorrer ruas, pracitas e canais entregues à população local, com escassos casais de turistas. Esta zona foi, desde o séc. XIV, de intenso movimento e comércio devido ao cais de travessia da laguna para as ilhas.



A mais bela igreja gótica de Veneza, completada em 1483, com um campanile admirável e rendilhados brancos (pedra da Ístria) sobre o tijolo vermelho, é tão linda por fora como rica por dentro.


Basta este magnífico Tintoretto para ficar em pasmo:

Presentazione di Maria al Tiempio
(1552-53)


Foi assim que vi, com a iluminação a prejudicar. Impressionante, visto de baixo, a reforçar a sensação de subida. Um portentoso retrato de mãe e filha.
Encontrei esta na net:


Detalhe:
Espantosa de humanidade, esta Ana a conduzir a criança escadas acima. De cortar a respiração.


Ainda mais para leste, sempre a norte de S. Marcos quem vai para a laguna, mas depois de atravessar para Castello, a segunda praça mais linda de Veneza, o  

Campo dei Santi Giovanni e Polo

com a imponente basílica gótica do mesmo nome, de 1430, mais conhecida por "Zanipolo" :)
Lá se faziam os funerais dos doges com a devida pompa.


Nenhuma fotografia faz justiça ao Campo San Zanipolo.

Cá fora, a fachada do Ospedale, decorada profusamente, onde abundam leões (contei 12):


Um dos leões em alto-relevo

Basilica dei Santi Giovanni e Polo

 
A mais grandiosa igreja gótica da cidade, uma vastidão interior de 100m por 46, e 41 de altura.

Lá dentro, este São José, raro, lindo de morrer:

Aqui, tal como eu o vi:  que ternura de pai!

San Giuseppe con il bambino
, obra de Guido Reini (1625?-1630?)


Procurei melhor na net, só arranjei esta:


Mas ainda não fico por aqui. A surpresa, na escuridão de uma capela, foi esta Adoração dos Pastores, de Veronese:

Aqui apresento só um detalhe.
A suavidade terna de Veronese, tão diferente de Tintoretto.

Na net obtive um pouco melhor:



Voltando agora à zona de S. Marcos, a

Igreja de Santo Stefano

(ao lado do Palazzo Loredan onde expunha Nadir Afonso) não é atractiva por fora. Mas tem tesouros...


Para começar, esta Última Ceia de Tintoretto, que não conhecia. Ele tem mais duas ou três "ultima cena". Esta foi uma revelação para mim. Pelo ângulo, pela teatralidade, pela animação e, claro, a pincelada e a côr. Uma palco em pirâmide, semeado de personagens e de acção, com vértice na cabeça de Jesus !

O primeiro impacto levou-me a pensar "mas esta ainda é mais espantosa que a de Leonardo".


Curiosas as auréolas de  todos (?) os apóstolos. E todos os olhares a convergir para o vértice... o cão é particularmente "director" do olhar.

Passada a Sacristia, surge um pequeno claustro, com alguma estatuária;  este anjo levou-me.

Anjo, mármore de Tullio Lombardo (c. 1455 – 1532)

Finalmente (porque o post já vai longo), San Giorgio Maggiore, a obra prima de Palladio. Mas desta vez, visitei os jardins, que nunca tinha apreciado. Fechados a visitas - mesmo assim fica aqui a homenagem a Jorge Luís Borges, patrono deste Livro de Areia.


 
O labirinto =  BORGES do avesso:

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Pires / Abbado e os Mozart nº 20 e 27

Acabo de ouvir a nova gravação de Maria João Pires com Claudio Abbado. O toque delicado, leve, ágil, alegre de Maria João é um prazer de se ouvir, e a Orchestra Mozart de Bolonha cumpre acompanhando com precisão e detalhe orquestral, em instrumentos convencionais.


Convencional é o que mais me parece a gravação. Depois de ouvir Brendel com a Scottish Chamber Orchestra dirigida por Mackerras, a diferença não podia ser maior. Brendel e Mackerras assinaram uma gravação marcante, histórica, inovadora, numa cumplicidade rara. A força de Brendel garante uma expressão mais intensa, e não menos articulada (embora menos rendilhada) que a de Maria João Pires; a direcção de orquestra de Mackerras, neste reportório, é muito superior à de Abbado, por outro entendimento da música pré-romântica alemã. Nos contrastes dinâmicos, nos ataque das cordas, na projecção dos sopros, é uma gravação onde a orquestra tem mais protagonismo, mais equilíbrio com o solista; não se limita a "acompanhar", como Abbado aparentemente faz com rigor e exactidão mas sem alma. Uma orquestra italiana que, como muitas vezes sucede, não compreende a música alemã, ficando-se por uma inexpressiva macieza.

Gostei mais, muito mais, de Maria João Pires com John Eliot Gardiner dirigindo com mão quase barroca a muito alemã orquestra de Viena.

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Veneza 5: Museu Correr e Biblioteca Sansoviniana

É imperdoável, mas só desta vez entrei no Museu Correr, ali mesmo em S. Marcos. Face a outras mostras (Accademia, San Rocco, Palazzo Grassi, Guggenheim...) o Correr nunca foi prioridade.


Erro. Para começar, a sala de leitura da Libreria Sansoviniana, terminada em  1560, obra do arquitecto Jacopo Sansovino. Embora seja parte da Biblioteca Marciana, o acesso a visitas é pelo interior do Museu.


Não basta ser bonita, tem um tecto com pinturas de Veronese, e nas paredes há uma galeria de filósofos de Tintoretto, de que não nos deixam aproximar :( .

O tecto do Salão de Leitura

A Música, de Veronese

Idem (da net)


A Aritmética e a Geometria, de Veronese


Idem, da net

Depois de ver a Música e a Matemática tão genialmente retratadas, eu devia ter saído, feliz q. b. por um dia.
Mas havia tanto mais...

Os Angeli Musicanti (painel) de Stefano da Zevio:

Espantosa obra do início do séc. XV ! As caras infelizes dos desgraçados anjitos...

Que instrumento é este ?


Depois, muitos baixos relevos e bustos romanos.

Fragmento de sarcófago de uma oficina ática, séc II, retratando uma batalha no mar. 

 
Fragmento de sarcófago (séc. II, Roma) narrando o rapto de Proserpina.
Que movimento e dramatismo !


E livros antigos, claro.



 http://marciana.venezia.sbn.it/il-salone-0


Ainda, Canova:

Insegnare agli ignoranti, faz cá muita falta

Dar da mangiare agli affamati, também


Finalmente, o sonho austro-húngaro de Sissi:


Restaurados na perfeição os aposentos de Isabel da Baviera, no Palácio Real de S. Marcos, quando visitou Veneza em 1856. Tudo para uma estada de 38 dias...

O salão de baile

Quero um centro de mesa igual.

Nota engraçada: de tudo, só me foi proíbido fotografar os 9 aposentos da princesa, mesmo sem flash. A estupidez anda por onde menos se espera.

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

L' Ippolito, Casa da Música 2012

[ Outra interrupção!]
 
Um triunfo, esta apresentação pela Casa da Música, em colaboração com os festivais de Ambronnay e de Sablé, da serenata L' Ippolito, última obra de Francisco António d' Almeida, estreada em 1752 - uma quase-ópera.

Como soube bem ver e ouvir na Casa esta produção com algum requinte cénico. A orquestra barroca, dirigida por Laurence Cummings. foi um permanente gosto - sonoridade bonita, coordenação com as vozes, sopros melhorados (desde a última vez que a ouvi). O trabalho de preparação desta obra de duas horas e meia (!!) foi certamente moroso, mas o resultado merece várias récitas mais !

Ana Quintans foi a voz que mais brilhou; a primeira aria, depois de recitativos, ainda a frio, foi lindíssima; o dueto de Ippolito (Ana Quintans) com Fedra (Eduarda Melo), talvez o momento mais belo da noite, merecia aplauso imediato... tal como a comovente ária "Vò a morire".
Também estiveram muito bem o contratenor Christopher Lawry em Creonte, com árias bem difíceis; e a Lésbia de Sónia Grané.

Menos bem,  Neptuno e Teseu.

O palco foi gerido de forma a permitir alguma movimentação dos cantores e alguma decoração singela - nem faltou o efeito de mar com uma cortina ondulante. Tudo muito bonito, sem excessos. Martin Parr encenou. As três horas passaram sem bocejo !

Parabéns, Laurence Cummings, Casa da Música, Ana Quintans, e toda a equipa.

domingo, 23 de setembro de 2012

Rigoletto, La Fenice 2012

Estreei o Teatro La Fenice, finalmente.


A entrada pelo canal

De fora, o edifício até é feio, deselegante, há muito mais bonitos aí pela Europa. Mas é lá dentro que a decoração luxuosa deslumbra.




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Como previa, não foi uma noite de Ópera superlativa, mas foi  mais que mediana, e com excelentes momentos.

Começando pelo pior: os cenários de Daniele Abbado não são kitsch pós moderno mas são de uma pobreza minimalista que não passaria com certeza no MET. Não dão de modo algum o ambiente de Veneza: tudo azul, painéis e colunas em ângulo recto, apenas valorizando os efeitos de luz e permitindo variar facilmente o espaço cénico. Roupas entre o moderno e o muito básico. Curioso o traje vermelho de Rigoletto.

O dueto, e os blocos azuis de Daniele Abbado

A orquestra do La Fenice esteve muito, mas muito bem mesmo. Até acho raro uma orquestra de teatro de ópera tocar tão bem. Não sei se houve mérito especial na direcção de Diego Matheuz, mas teve o meu aplauso.

Dimitri Platanias e Desirée Rancatore foram as duas maravilhas da noite. O dueto saiu tão belo quanto pode, as duas vozes perfeitamente entrelaçadas, ambas com timbre bonito, emotivamente expressivas e vocalmente ágeis. Frisson. Em geral, estiveram ambos sempre ao mais alto nível - apenas gostaria de um pouco menos de vibrato na Gilda, de resto personagem bem construída pela Rancatore, o que nem sempre sucede. Tutte le feste al tempio irresistível, na projecção da voz, na segurança dos agudos.

O Rigoletto é uma ópera de enganos e dualidades: o buffone e a filha debatem-se entre o bem e o mal, não há maniqueísmo, até o duque afinal tem o seu lado gentil; os enganos não são de comédia, deta vez, hélas, é uma tragédia - toda a gente engana e se deixa enganar, com o fim que se sabe.

A mediocridade da noite foi o duque de Mântua, com Gianluca Terranova. Voz pequena, sem projecção nem expressão, piorada por uma actuação estática inexpressiva. Um Dona Mobile fraquinho, esquecível, portanto. mas pior ainda foi o Ella mi fu rapita/Parmi veder le lagrime, de que gosto mais.

No Bella Figlia Dell Amore, não se notaram desencontros de maior, mas além de Terranova, também a Maddalena (Anna Malavasi) deixou muito a desejar, com uma voz feia, feia.

Nunca vi nem ouvi melhor finale entre pai e filha moribunda ! Perfetto.

O côro esteve bem e os momentos de tutti com a orquestra tiveram impacto e segurança.

Acto I, cena 2

Cena final


Desirée Rancatore no Caro Nome