segunda-feira, 27 de junho de 2016

Dunas e paliçadas ao pôr do sol, com poema de Frost.


Nete início de Verão estavam limpas e bonitas as dunas - a sua cobertura vegetal e as paliçadas de protecção.

Castelos na areia...





Lembra-me um poema de Robert Frost, 'Sand Dunes'.

Sea waves are green and wet,
But up from where they die,
Rise others vaster yet,
And those are brown and dry.

They are the sea made land
To come at the fisher town,
And bury in solid sand
The men she could not drown.

She may know cove and cape,
But she does not know mankind
If by any change of shape,
She hopes to cut off mind.

Men left her a ship to sink:
They can leave her a hut as well;
And be but more free to think
For the one more cast-off shell. 

                                                Robert Frost

Tentativa de tradução (não conheço nehuma) :

As ondas do mar são verdes e molhadas
Mas acima de onde elas morrem
Outras se elevam ainda mais vastas
E essas são castanhas e secas.

São a terra que o mar constrói
Para a vila de pesca alcançar
E sepultar em sólida areia
Os homens que não pôde afogar.

Ele conhece bem baías e cabos,
Mas nada sabe dos homens
Se por alguma diferente forma,
deseja amputar-lhes o ânimo.

A ele, os homens dão o barco a afundar
Também lhe podem deixar a cabana.
Serão mais livres ainda para pensar
noutra concha mais na praia rejeitada.





sexta-feira, 24 de junho de 2016

A casa de Marques da Silva, o arquitecto que moldou o Porto


Decorreu no fim de semana passado no Porto a 'Open House' 2016, em que alguns edifícios ou locais de interesse arquitectónico abrem as portas ao público. Desta vez fui visitar, na Praça do Marquês, o prédio onde viveu o arquitecto Marques da Silva. É uma construção de 1909 que por fora se integra ainda na tradição portuguesa - alpendres, telha de barro, escadas exteriores cobertas, janelas com portas de madeira, varandas com trabalho decorativo em ferro forjado, algum azulejo ou figura de pedra decorativa - mas com a inovação que Marques da Silva procurou trazer, de influência francesa, que se nota muito mais no interior.

O que mais impressiona é a distribuição da luz por espaços não muito amplos, usando sabiamente janelas, varandas e clarabóia. O efeito é conseguido também pela grande liberdade de circulação - para ir de uma divisão a outra há sempre dois ou três percursos alternativos, recorrendo a muitas portas, pequenas divisões intermédias, curtos corredores. Tanto a luz como os habitantes podem variar nos caminhos que tomam. É uma casa cheia de bifurcações, talvez J. L. Borges dela gostasse !

Casa Atelier Marques da Silva (1909)
Praça do Marquês de Pombal, Porto


O espaço mais nobre do 1º andar.

Uma bela entrada de luz pelo lado sul.

Detalhe da divisão nobre com vista para o jardim.

Porta (detalhe)

Uma das passagens possíveis entre a frente e as trazeiras.

Varanda cénica para a Praça do Marquês.

Um dos espaços de trabalho do arquitecto.

Uma das duas escadarias ondulantes que sobem ao 1º andar. Há música nesta arquitectura.

Placa de luz sob a clarabóia.

Trazeiras, a dar para o jardim.


Uma grade de varanda, de novo com ritmo musical :)


Marques da silva faleceu nesta casa em 1947. Deixou uma herança vasta na paisagem da cidade, que faria escola durante décadas, e modelou uma parte substancial da fisionomia da "baixa", reconfigurando o Porto moderno como um centro de serviços com novo aparato simbólico,

Algumas da principais obras:

- Estação de São Bento (1896-1916), na Praça de Almeida Garrett, com o famoso painel de azulejo.
- Teatro Nacional S. João (1910-1920), na Praça dom a Batalha, no Porto
- Galerias Palladium (1914-1927), esquina da Rua de Santa Catarina com Passos
Manuel, no Porto
- Edifício das Quatro Estações (1905), na Rua das Carmelitas, no Porto:


- Edifício da Companhia de Seguros "A Nacional" (1919-1924), na Avenida dos Aliados:

- Liceu Alexandre Herculano (1914-1931), na Avenida de Camilo.
- Casa e Jardins de Serralves (1925-1943), na Rua de Serralves, talvez a sua obra-prima !


quarta-feira, 22 de junho de 2016

Mozart filho, Franz Xaver


De Mozart (Wolfgang) é mais ou menos conhecido o pai, Leopold, que compôs belas obras barrocas, serenatas e sinfonias, e algumas peças simples para guitarra. Certamente o filho beneficiou de ouvir música em casa desde criança.

Bourée, de Leopold Mozart (int. amador)

Já o filho mais novo de Mozart e Constanze, Franz Xaver Wolfgang Mozart, é menos conhecido. Herdou o nome próprio do grande amigo do casal Mozart, Süssmayr (Franz Xaver Süßmayr). Ouvi há pouco na Radio Suisse Classique o Concerto para piano e orquestra nº 2 op.25 de 1818. É uma obra virtuosística, já em pleno romantismo, com uma parte solista muito elaborada, bem disposta, mas pouco intensa, de orquestração modesta.

Franz Xaver foi compositor, pianista, director de orquestra e professor de música. Contudo, viveu sempre colado à imagem do pai Mozart, modelo que idealizou e queria imitar. Morreu só, sem família, e alguém lhe escreveu no epitáfio:

«Was würde wohl mein Vater sagen?»
War dich zu hemmen schon genug.

 "Que teria dito o meu Pai?"
Bastava isso para o inibir.


O concerto para piano nº 2 vale a pena ser ouvido pela parte solística, em particular o Rondo, ou para reconhecer aqui e ali, sorrindo, a herança paterna.

Rondo: Allegreto aos 17:46, o mais mozartiano.




domingo, 19 de junho de 2016

Brexit, Bremain ou simplesmente Brain



Há várias coisas assustadoras na saída do Reino Unido da União Europeia. A mais assustadora são os argumentos. Não há provavelmente país que recolha mais benefícios e mais tolerância pela sua diferença na pertença à UE. Praticamente imune ao euro e com contributo líquido para a União muito abaixo do seu sucesso económico, o Reino Unido arrisca tudo na saída e vai-se arrepender. A sua dependência de mercados como o americano e o chinês torná-lo-á bem mais fraco e indefeso. A Europa, a maior economia e a mais bem sucedida do mundo ainda hoje, garantia ao RU uma retaguarda sólida que tem sido certamente um dos factores do seu crescimento.

Os que hoje dizem que a Europa já não é o que foi, deixou de ser democrática e solidária para ser um feudo da Alemanha apoiada por uns poucos seus satélites, são basicamente os mesmos - recordo bem - que de início já eram violentamente contra a nossa integração num espaço capitalista-imperialista. Claro que a Europa já não é a mesma: cresceu desmesuradamente, caóticamente, e isso foi um erro, que não impede muitos dos seus críticos de favorecerem a entrada da Turquia. Ao crescer dessa maneira sem um modelo centralizado federal que anulasse as soberanias nacionais, tornou-se refém de uma impossível democracia "ponderada", onde cada país tem direito a uma quota parte de poder proporcional à sua dimensão. Isso não só beneficia a Alemanha como cria a tentação de países pequenos - os do Báltico, a Holanda e a Dinamarca, Portugal também - se esforçarem pelas boas graças da Alemanha, como que formando uma rede de satélites amigos do mais forte e seguro.

Mas quem sempre se opôs ferozmente ao modelo federal foi justamente o Reino Unido! O modelo que mais poderia contribuir para uma renovação e reforço da Europa no sentido de mais democracia foi arrasado sistematicamente pelos ingleses. Se saírem, deixam de se poder opor, o que até é bom.

O Reino Unido precisa da Europa mas detesta a Europa. Quer estar dentro e quer estar fora. Gosta mais dos Estados Unidos mas tem mais medo deles por ser mais fraco. Os ingleses odeiam a Alemanha e o seu poder na Europa por uma só razão: queriam ser eles a Alemanha da Europa, eles a mandar e a fazer o que lhes apetece aparecendo ao mundo como a parte mais forte do potentado económico que mais bem estar consegue para os seus cidadãos.

É o Reino Unido quem vai perder à grande com o Brexit, a médio prazo. Até a libra vai perder - por incrível que pareça, era o apoio em contraponto do euro que lhe dava força. Quanto à Europa, que é o que mais interessa, tem de aproveitar a oportunidade para se renovar pela via federal, agora que perdeu um forte oponente. Tem de recusar os profetas da desgraça e os anunciantes da sua morte breve, sempre os mesmos, e avançar mais - sem novas adesões ! - para um Estado Federal que restrinja as soberanias locais a uma espécie de autarquias, ou autonomias, como em Espanha. Tem de passar a ter um Parlamento com eleições para deputados e para Governo.

Gosto muito de Inglaterra, da Escócia e do País de Gales, e pessoalmente não mudarei a simpatia e a admiração. O acesso talvez se torne mais difícil, é tudo. Preferia que a História tivesse sido outra, mas se agora os eleitores votarem 'Remain', que tristeza. Fica tudo na mesma (até ao próximo referendo) ? Não: o país perde protagonismo na Europa, fica enfraquecido com a Alemanha a rir-se, e a Europa não se mexe.

Prefiro o Brexit, mas com um brainstorm na Europa.


quarta-feira, 15 de junho de 2016

Il signor Palomar a ver as ondas, conto de Italo Calvino.


Lettura di un'onda é um dos contos do livrinho Palomar (Einaudi, 1983) onde Italo Calvino filosofa sobre o homem e a vida moderna, em particular as coisas mais desagradáveis - solidão, excesso de trabalho, ruído, convenções, depressão ... mas Calvino escreve na forma de parábolas, com uma fantasia e riqueza de texto irresistíveis. Com esta lettura identifico-me bastante.

Mais uma vez, publico a minha tradução (encontro defeitos na tradução corrente, da Teorema), até para este post ter alguma coisa de meu.


Leitura de uma onda

O mar está levemente encrespado e pequenas ondas vêm quebrar na praia arenosa. O senhor Palomar está de pé na areia e observa uma onda. Não que esteja absorto na contemplação das ondas. Não está absorto, porque sabe bem o que faz: quer observar uma onda, e observa-a. Não está contemplando, porque para a contemplação é preciso um temperamento adequado, um estado de ânimo adequado e um concurso de circunstâncias externas adequado: e embora o senhor Palomar nada tenha contra a contemplação em princípio, o facto é que nenhuma daquelas três condições se verifica neste caso. Em suma, não são "as ondas" que ele pretende observar, mas uma onda única e simples: no intuito de evitar as sensações vagas, ele fixa previamente para cada um de seus actos um objectivo limitado e preciso.

O senhor Palomar vê uma onda despontar ao longe, crescer, aproximar-se, mudar de forma e de côr, enrolar-se sobre si mesma, quebrar-se, desvanecer, refluir. A essa altura poderia convencer-se de ter levado a cabo a operação que se tinha proposto e ir-se embora. Contudo, isolar uma onda da que se lhe segue de imediato e que parece empurrá-la ou às vezes juntar-se a ela e subjugá-la  é algo muito difícil, assim como separá-la da onda que a precede e que parece arrastá-la em direcção à praia, ou então talvez voltar-se contra ela como se quisesse detê-la. Se considerarmos ainda cada onda no sentido de amplitude, paralelamente à costa, será difícil estabelecer até onde a frente que avança se estende continuamente e onde se separa e se segmenta em ondas independentes, distintas na velocidade, na forma, na força, na direcção.

Em suma, não se pode observar uma onda sem levar em conta os aspectos complexos que concorrem para formá-la e aqueles igualmente complexos a que ela dá lugar. Estes aspectos variam continuamente, pelo que cada onda é diferente de outra onda; mas é também verdade que uma onda é igual a uma outra onda, mesmo quando não imediatamente contígua ou sucessiva; enfim, são formas e sequências que se repetem, ainda que distribuídas de modo irregular no espaço e no tempo. Como o que o senhor Palomar pretende fazer neste momento é simplesmente ver uma onda, ou seja, colher todas as suas componentes simultâneas sem descurar nenhuma, o seu olhar irá deter-se sobre o movimento da água que bate na praia, a fim de poder registar aspectos que não tinha captado de início; logo que se dê conta de que as imagens se repetem, saberá que já viu tudo o que queria ver e poderá ir-se embora.

Homem nervoso que vive num mundo frenético e congestionado, o senhor Palomar tende a reduzir suas próprias relações com o mundo externo e para defender-se da neurastenia geral procura  tanto quanto pode manter as suas sensações sob controle.



A crista da onda ao avançar em frente ergue-se num determinado ponto mais do que noutros e é ali que começa preguear-se de branco. Se isto acontece a certa distância da praia, a espuma tem tempo de enrolar-se sobre si mesma e desaparecer de novo como que tragada e no mesmo momento tornar a invadir tudo, mas desta vez surgindo de baixo, como um tapete branco que soergue a baínha para acolher a onda que chega. Mas, quando se espera que a onda role sobre o tapete, damo-nos conta de que já não há mais onda mas apenas o tapete, e mesmo esse rapidamente desaparece, torna-se uma cintilação da areia banhada que se retira veloz, como se a rejeitá-lo houvesse uma expansão da areia seca e opaca avançando a sua fronteira ondulada.

Ao mesmo tempo é preciso considerar as reentrâncias da frente, quando a onda se divide em duas alas, uma que tende em direcção à praia da direita para a esquerda e outra da esquerda para a direita, e o ponto de partida ou de chegada dessa divergência ou convergência é aquela ponta em negativo, que segue o avançar das alas mas sempre mantendo-se um pouco atrás e sujeita à sua sobreposição alternada, até que seja alcançada por uma outra onda mais forte embora também esta com o mesmo problema de divergência-convergência, e depois por outra ainda mais forte que resolve o enovelado rebentando com ele .

Tomando como modelo o desenho das ondas, a praia avança na água pontas apenas esboçadas que se prolongam em bancos de areia submersos, como as correntes os formam e desfazem a cada maré. Foi uma dessas baixas línguas de areia que o senhor Palomar escolheu como ponto de observação, porque as ondas batem obliquamente de um lado e do outro, e ao cavalgarem a superfície semi-submersa vão encontrar-se com as que chegam do outro lado. Assim, para compreender como é feita uma onda é necessário ter-se em conta esse impulso em direcções opostas, que em certa medida se contrabalançam e em certa medida se somam, e produzem uma rebentação geral de todos os impulsos e contra-impulsos no habitual espalhar da espuma.




O senhor Palomar está procurando agora limitar seu campo de observação; se ele tiver presente um quadrado de, digamos, dez metros de praia por dez metros de mar, pode completar um inventário de todos os movimentos de ondas que ali se repetem com frequência variada dentro de um dado intervalo de tempo. A dificuldade está em fixar os limites desse quadrado, porque se, por exemplo, ele considera como o lado mais distante de si a linha elevada de uma onda que avança, essa linha aproximando-se  e erguendo-se esconde da sua vista tudo o que está atrás; e eis que o espaço considerado para exame se inverte e ao mesmo tempo se comprime.

Contudo, o senhor Palomar não perde o ânimo e em cada momento acredita ter conseguido ver tudo o que poderia ver de seu ponto de observação, mas depois sucede sempre alguma coisa que não tinha levado em conta. Se não fosse por esta sua impaciência de chegar a um resultado completo e definitivo da sua operação visiva, a observação das ondas seria para ele um exercício muito repousante e poderia salvá-lo da neurastenia, do infarto e da úlcera gástrica. E talvez pudesse ser a chave para a padronização da complexidade do mundo reduzindo-a ao mecanismo mais simples.

Mas todas as tentativas de definir este modelo devem levar em consideração uma onda longa que ocorre em direcção perpendicular à rebentação e paralela à costa, fazendo deslizar uma crista contínua e apenas aflorante. A corrida das ondas que se eriçam para a praia não perturba o impulso uniforme dessa crista compacta que as corta em ângulo recto, e não se sabe para onde vai nem de onde vem. Se calhar é um fio de vento de nascente que move a superfície do mar em sentido transversal ao impulso profundo que vem das massas de água do largo, mas essa onda que nasce do ar recolhe de passagem também as forças oblíquas que nascem da água, forças que desvia e reencaminha no seu sentido levando-as consigo. Assim vai continuando a crescer e a ganhar força para que o encontrar-se com as ondas contrárias não a esmoreça pouco a pouco até fazê-la desaparecer, ou então a torça até fazê-la confundir-se com uma de tantas dinastias de ondas oblíquas, e a bater na praia com as outras.




Dirigir a atenção para um aspecto fá-lo saltar para o primeiro plano e invadir o quadro, como em certos desenhos que basta fechar os olhos e ao reabri-los a perspectiva já mudou. Além do mais nesse entrecruzar-se de cristas diversamente orientadas o desenho de conjunto torna-se fragmentado em painéis que afloram e se desvanecem. Acresce que o refluxo de cada onda também possui uma força que se opõe às ondas que lhe sucedem. E se se concentra a atenção nesses impulsos retroactivos parece que o verdadeiro movimento é aquele que parte da praia e vai em direcção ao largo.

Será que o verdadeiro resultado a que o senhor Palomar está prestes a chegar é o de fazer com que as ondas corram em sentido oposto, de virar o tempo do avesso, de discernir a verdadeira substância do mundo para além dos hábitos sensoriais e mentais? Não, ele chega quase a experimentar um leve sentido de reviravolta, nada mais. A obstinação que impulsiona as ondas em direcção à costa é partida ganha: de facto, elas estão bastante maiores. Estaria o vento a mudar ? É pena que a imagem que o senhor Palomar conseguiu minuciosamente montar agora se interrompa, se esmigalhe e se disperse. Só se ele conseguir ter presentes todos os aspectos juntos poderá iniciar a segunda fase da operação: estender esse conhecimento ao universo inteiro.

Bastaria não perder a paciência, coisa que não tarda a acontecer. O senhor Palomar afasta-se ao longo da praia, com os nervos tensos como tinha chegado e ainda mais inseguro de tudo.

                                
                                                                                       Italo Calvino, 1983

domingo, 12 de junho de 2016

"Cântico do Sol" de Gubaidulina estreia na CdM


O Cântico do Sol  de Sofia Gubaidulina teve a sua estreia na Casa da Música num programa em que reinou o violoncelo, e que incluiu três canções corais de Brahms e a suite para violoncelo BWV1007 de Bach, que só por si já valeria o concerto se fosse boa a prestação de Filipe Quaresma: foi excelente, teve alguns toques pessoais  (uma ou outra dissonância salientada, acentuações inusitadas), nada Rostropovichiana - a opção foi mais rápida, ao estilo barroco revisitado, e resultou fantástica na Courante vertiginosa.

Mas o plat de résistance era o Cântico do Sol de 1997, para violoncelo, côro de câmara e percussão.
Côro Casa da Música
Kaspars Putninš, direcção musical
(titular do Coro Filarmónico da Estónia)
Filipe Quaresma, violoncelo (e outros)
Mário Teixeira, percussão
Manuel Campos, percussão


Sofia Gubaidulina nasceu numa cidade tatar (tártara) - Chistopol, na actual república autónoma do Tatarstão, próximo da bela, histórica, 'incontornável' Kazan. Actualmente a sua vida artistica é repartida entre a Alemanha e a Suécia.

O Cântico do Sol é uma obra coral religiosa sobre texto de S. Francisco (Laudes Creaturarum) em dialecto úmbrico italiano. Praticamente isenta de melodia, com o côro limitado a pouco mais que cantochão, a obra vale pelo protagonismo quase histérico do violoncelo, polivalente, e por harmonias bem conseguidas com o violoncelo, a percussão e as vozes. Apreciei sobretudo os momentos em que houve contraponto (côro /violoncelo).

Tenho uma gravação de 2012, com a Kamerata Baltica e Nicolas Alstaedt ao violoncelo; por comparação, esta na Casa da Música fica a perder, mas valeu pelo desempenho de Quaresma e pela componente visual e espacial, que tem a sua importância.



sábado, 11 de junho de 2016

'The legendary Nikolaus Harnoncourt'


É assim, há pessoas que passam a legendárias mal nos deixam, ou se calhar ainda em vida. É pelo menos desta forma que o maestro Harnoncourt é anunciado na ClassicFm, numa obra de génio que ele interpretou como ninguém: a Fantasia Coral (Chorphantasie, 1808) de Beethoven. Ao piano, e bem, Laurent Aimard. Um dos melhores CDs de sempre, a ouvir muitas vezes.


Dura cerca de 20 minutos e está integralmente no youtube. Se só houver tempo para uma parte, que seja a grandiosa 3ª, onde se nota mais a mão de Harnoncourt. E de preferência em alta fidelidade.

1 Adagio (piano)

2 Finale I

3 Finale II



Harnoncourt Heritage.


quarta-feira, 8 de junho de 2016

Os 'Larousse' - cresci entre o Petit e o Grand


A minha tendência 'enciclopédica', que se nota aqui no Livro, talvez tenha esta explicação simples - foram dois 'Larousse' a monumental fonte de informação que me formatou.


Foi por influência das visitas à minha tia, a única que interessa para o caso, onde tinha liberdade nos anos 60 para consultar um livro bonito que era raro ver por cá: o Petit Larousse de 1963 - que comecei a coleccionar recortes de jornal (sobretudo o 'Primeiro de Janeiro'), que agrupava por temas, e depois colava nuns cadernos muito mal amanhados com capa de cartolina e folhas presas por agrafos. Chamava a isso "Enciclopédia Ilustrada", para enorme gozo do meu irmão. Era, na altura, o meu 'blog'.


Mas o que me interessa agora aqui é relembrar o Petit Larousse. 1798 páginas em formato A5, bem encadernado e muito usado, tanto que está encapado com protecção plástica. Uma jóia. Era editado por Claude Augé.

A letra A começava com um belíssimo Avion Caravelle, a letra T figurava sobre uma imagem do Tigre Royal.


Cada capítulo de Arte - românica, mexicana, muçulmana - tinha direito a uma ou duas páginas ilustradas de exemplos. Algumas pranchas a cor eram um luxo - Papillons, Energie nucleaire, Renaissance, Costumes. Cada país, cada continente, dava direito a um excelente mapa, a uma ou duas cores.

Aqui encontrei uma aprendizagem que a escola não dava.

As famosas pages rose separavam o volume em duas partes. Nelas listavam-se locuções latinas (quase todas !) e estrangeiras:

Um guia precioso!

Antes das páginas rosas, na primeira parte, que era a maior, os nomes comuns; na segunda parte, os nomes próprios - pessoas, personagens mitológicas, localidades. Desenvolvia-se a História e a Cultura, com mapas, pranchas e cronologias. A Suíça tinha um belo mapa de página inteira, detalhado, tão grande como o dedicado à Península Ibérica; lá ao norte ficava, sic, La Corogne. As últimas páginas eram outro suplemento - um pequeno Atlas dos países francófonos.

Era óbvio o peso maior da cultura clássica - havia muito mais informação sobre a Mesopotâmia, a villa Borghèse ou as igrejas Góticas, do que sobre arquitectura moderna, a pintura abstracta, as cidades de hoje. Todos esses enviesamentos influenciaram certamente o meu gosto, é verdade.

Matisse é o mais moderno a merecer referência ilustrada.

'Automobile'. Quando era quase uma arte.

Um dos poucos nomes portugueses, Camões: "grand poète portuguais (...) mort dans la misère. Il excèle dans les images hardies, les peintures éclatantes des phénomènes de la mer." Voilá.

Salazar, oh não, "homme d'état portuguais,  il a fondé le nouvel état sur le régime corporatif et maintenu son pays dans la neutralité."
Praticamente o mesmo número de linhas.

'Bateau' surpreende pelas duas referências a Portugal: o sardinier (suponho que é o barco da xávega) e o rahello, certamente rabelo do Douro.

É fácil, hoje, detectar erros, incorrecções e disparates. a net é tão mais rápida e auto-correctiva. Em 63 nem se sonhava com isso: ordinateur, s.m., 'calculateur arithmètique' (...). A proeza mais recente da humanidade era o satélite russo tripulado (1961), o Vostok 1 de Gagarine ainda algo misterioso, e a tecnologia de vanguarda era o transistor. "Trou noir" não existia, nem sequer "cassette", mas existe électrophone (uma caixa, tipo mala, com gira-discos e altifalante)!


O Larousse du XXème Siècle é de outro campeonato. São 6 enormes e pesados volumes, do A-Carl ao Ro-Z, sem esquecer o Carm-D, onde era suposto encontrar tudo, exaustivamente, sobre qualquer assunto até à data de publicação.


O forro da encadernação já era por si uma pequena enciclopédia.

Não é livro que se leve para ler na cama antes de adormecer, mesmo assim "li-o", quer dizer, folheei uma a uma todas as páginas consultando um ou outro artigo, duas vezes !

Assim abriam as letras.

Editado por Paul Augé, editor da família de Claude Augé.

Oiseaux.

'Arbres', uma das minhas pranchas favoritas.

No 'XXème', Portugal merecia três páginas, nada mal. Infelizmente, uma delas era a genealogia da monarquia portuguesa...

Uma das grandes qualidades do Larousse eram os magníficos desenhos, todos eles. Mas em particular os desenhos de obras de arte - igrejas, castelos, e mesmo pinturas ! - que faziam melhor efeito do que fotografias.

Louve du Capitole.

La foi.


Ave Cesar.

Bela coisa, as enciclopédias. Belos livros, sim, mas belos objectos também, testemunhos históricos de uma época.

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Hoje, a viagem virtual percorreu memórias de... livros! :)


domingo, 5 de junho de 2016

Poema do supermercado, Whitman e Ginsberg


Deparei há poucos dias (*) com este lindíssimo poema de Allen Ginsberg que nunca tinha lido, em que Walt Whitman é o principal interveniente, numa evocação que mais parece uma sentida homenagem. O supermercado é como um microcosmos da nação decadente, onde ambos andam à deriva, como deportados em país estranho. Há quem veja nele uma epécie de novo Inferno de Dante, onde somos guiados por corredores infestados de demónios. Mas Ginsberg, idealista da "beat generation", não esteve nunca em sintonia com Whitman, saudosista da Nação americana genuína.

Procurei traduções, mas não encontrei nenhuma decente. Aqui fica a minha tentativa.


Um supermercado na Califórnia

Como pensei em ti esta noite, Walt Whitman, enquanto caminhava debaixo das árvores por ruas travessas, a olhar para a lua cheia com uma dor de cabeça, conscientemente.

No meu faminto cansaço, e tentando comprar imagens, entrei no néon do supermercado de frutas sonhando com as tuas listas !

Que pêssegos e que penumbras! Famílias inteiras às compras de noite! Corredores cheios de maridos!

Esposas entre os abacates, bébés entre os tomates! – e tu, Garcia Lorca, o que estavas a fazer junto das melancias?

Eu vi-te Walt Whitman, sem filhos, velho furão solitário, remexendo as carnes no refrigerador e fazendo olhinhos aos garotos da mercearia.

Ouvi-te fazer perguntas a cada um: Quem matou as costeletas de porco? Quanto custam, as bananas? Serás tu o meu Anjo?

Deambulei à esquerda e á direita entre as pilhas brilhantes de enlatados, seguindo-te e sendo seguido na minha imaginação pelo segurança da loja.

Passeámos juntos por largos corredores na nossa solitária fantasia provando alcachofras, pegando em todos os petiscos congelados, e sem nunca passar pela caixa.

Aonde vamos, Walt Whitman? As portas fecham dentro de uma hora. Para onde aponta a tua barba esta noite? (Toco o teu livro e sonho com a nossa odisseia no supermercado e sinto-me absurdo).

Vamos andar toda a noite por ruas solitárias ? As árvores somam sombras às sombras, luzes apagadas nas casas, ambos ficaremos sós.

Vaguearemos sonhando com a América perdida do amor, passando pelos automóveis azuis na estrada, de volta à nossa silenciosa cabana?

Ah, querido pai, barba grisalha, velho professor de coragem, que América era a tua quando Caronte deixou de navegar a sua barca e tu foste para a margem enevoada, vendo a barca desaparecer nas negras águas do Letes ?

Berkeley, 1955


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Também tive uma fase de ódio e rejeição aos supers e hipers. Ficava doente lá dentro, sobretudo com enchente. Agora habituei-me, e se não é um lugar poético, passou pelo menos a rotineiro e indiferente.

Já agora, parabéns a ambos pelo aniversário recente - Whitman a 30 de Maio, Ginsberg na sexta passada, dia 3.



* The Paris Review